William Bittar

Carioca, arquiteto graduado pela FAU-UFRJ, professor, incluindo a FAU-UFRJ, no Departamento de História e Teoria. Autor de pesquisas e projetos de restauração e revitalização do patrimônio cultural. . Consultor, palestrante, coautor de vários livros, além de diversos artigos e entrevistas em periódicos e participação regular em congressos e seminários sobre Patrimônio Cultural e Arquitetura no Brasil.

O dia 1ºde março de 2025 assinala o aniversário de fundação da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, que completa 460 anos conforme texto publicado neste jornal.

            Fundação? Afinal, desde o dia 10 de novembro de 1555, as terras que abrigariam a futura cidade luso-brasileira foi ocupada por outros europeus. Naquela ocasião, três embarcações francesas entraram naquela baía, que muitos identificaram como foz de um rio, desembarcando cerca de seiscentos homens comandados por Nicolas Durand de Villegagnon.

            Diferente de outras invasões, aqueles europeus calvinistas, patrocinados pelo rei Henrique II, pretendiam se instalar abaixo do Trópico de Capricórnio, localização equivocada em mapas franceses, implantando o núcleo original da futura França Antártica.

O cartógrafo oficial da expedição, o frei franciscano André Thévet, registrou que os estrangeiros foram recebidos pelos povos locais da maneira mais hospitaleira possível, desde que, na linha do horizonte, surgiram algumas embarcações, com suas velas ao vento, na direção do litoral.

            Ali estava ela, cabelos negros, talvez como a asa da graúna, descrição de José de Alencar para Iracema. Não havia nada que lhe cobrisse suas vergonhas, como Caminha descrevera em sua carta ao Rei D. Manuel.

            Sua curiosidade aumentava, à medida que as caravelas se aproximavam, revelando suas dimensões até então desconhecidas. Ainda distantes da praia, pararam, como se impedidas por alguma força ancestral poderosa. Talvez Tupã, ou a grande estrela Taína-Cã. Jacy apareceu espreitando no céu enquanto ela retornava à aldeia para contar a estranha visão.

            Quando Coaracy surgiu no horizonte, avermelhando a imensidão do oceano, pequenos barcos, como filhotes, saíam dos cascos enormes e tomavam a direção da areia. Ela não estava mais sozinha. Alguns guerreiros, pintados para a guerra, trazendo suas lanças, postavam-se na linha onde o mar batia levemente.

            Aquelas águas protegidas, numa grande enseada, pareciam um seio do mar guarnecido pela natureza exuberante. Pequenas ondas, temperatura agradável, favorável à atividade pesqueira, incluindo baleias, que visitavam aquela baía para uma tranquila desova.

            Os esquifes se aproximavam e já era possível identificar uma gente estranha, vestindo curiosos trajes com golas altas e desconhecidas peças rígidas que reluziam ao sol, incluindo estranhos chapéus, muito diferentes de seus cocares. O primeiro bote parou antes da quebrada das ondas. Desceu um moço de pele muito branca, como o miolo da mandioca – mani – ela pensou. Suas pernas lembravam uma ave dos rios. Usava um estranho saiote, como uma lanterna das futuras festas de São João, adereço que se repetia, em menor dimensão, em torno do pescoço. Sobre a cabeça, uma estranha carapuça rígida, que brilhava na luz da manhã.

            Em sinal de reverência, a estranha criatura descobriu a cabeça, desembainhou a espada, colocando-a no chão. Aquele que parecia do líder dos guerreiros repetiu o ato, desfazendo-se da lança, retirando o cocar de plumas coloridas, oferecendo-o ao visitante. Estava celebrado o primeiro contato amistoso entre povos tão distintos, sem que houvesse alguma fala.

            Ao longe, ela observava curiosa aquele homem de pele branca, rosto coberto por fios claros como cabelo de milho, um estranho animal que a atraía. Junto dela, algumas outras nativas curiosas perfilavam-se diante da mata, inteiramente nuas, surpreendendo aqueles franceses de formação calvinista. Teriam chegado ao Jardim do Éden?

Em poucas semanas aquela expedição se estabeleceu numa pequena ilha, reduto de um futuro fortim.  Uma decisão providencial do comandante, afastando seus soldados das filhas de Eva e do pecado que grassava ao Sul do Equador, como diziam alguns padres da Companhia de Jesus.

            No entanto, visitas regulares ao continente eram necessárias para abastecimento de água potável e víveres. E assim elas puderam se aproximar daqueles brancos franceses que, pouco a pouco, aprendiam a tomar banho de mar e de rio, abandonar as roupas e muitas convicções políticas e religiosas.

            Após algum tempo, a França Antártica assistia a inúmeras deserções na tropa. Os soldados incorporavam novos hábitos, como o banho, a pouca ou nenhuma roupa e alimentos nunca experimentados. Deixaram na Europa, hipocritamente puritana, até mesmo práticas como o ato sexual quase inteiramente vestidos. A América indígena se miscigenava com a Europa caucasiana, revelando seus próprios segredos. Aquela amplidão de terras estava por ser conquistada, não apenas pelas armas. Urgia uma providência do Império lusitano.

            Após muitas tentativas frustradas, o governo português armou uma esquadra, trouxe ajuda de outras regiões da Colônia e iniciou a guerra para expulsão dos franceses.

            Naquele 1º de março de 1565, Estácio de Sá aportou em terras cariocas e iniciou o processo de reconquista, com a fundação da cidade de São Sebastião, o santo padroeiro que foi visto numa embarcação, encorajando as tropas lusas à vitória contra o invasor, naquele 20 de janeiro de 1567.